quinta-feira, 25 de novembro de 2010

DEGUSTAÇÃO NA FLORESTA

Tenho participado de incontáveis degustações na minha vida, nas quais, além de provar, analisar e expressar-me sobre os vinhos, sou atraído pela postura de alguns companheiros. Numa dessas idas e vindas fui parar numa cidadezinha afastada e, na volta, achei que era o pulo do gato desviar por uma estradinha de terra mas, no fim, tive que enfrentar uma estrada que era só costela de cão. Cheguei exausto, dormi agitado, tive sonhos intensos. Dentre esses sonhos, um foi tão incrível que vou reproduzi-lo aqui.

Era uma degustação em Porto de Galinhas, numa confraria de animais. Eu estava um verdadeiro peixe fora d´água, ruminando a idéia de que tinha feito a viagem do sapo. O cheiro de zoológico atrapalhava um pouco a percepção dos aromas, mas resolvi que ia abaixar a crista e enfrentar tudo sem grilo.

Na avaliação sensorial, a cena foi roubada pelo Pavão que, de rabo em leque, fazia evoluções com a taça em verdadeiros contorcionismos e, com olhar de conteúdo, desfilava frases de grande efeito. Ao lado, o Ratinho, silencioso e sorrateiro, fazia seu trabalho de leva-e-traz nos bastidores, sem se comprometer, mas influenciando os menos convictos. Destoando dele, o palrador Papagaio, tido como o maior bom de bico, deitava tremenda falação, repetitiva e interminável, a qualquer amostra servida, deixando todos querendo impacientemente “tirá-lo da tomada”. Ele nem ligava, surdo como um lagarto.

Presidindo o painel, o Leão, incomodado por um olho de peixe, cantava de galo, urrando sua pretensa superioridade, mas descuidava-se, pagando os maiores micos, saindo-se como uma verdadeira anta, o que deixava o pessoal uma arara.

Os vinhos foram servidos às cegas e em seqüência aleatória, em ritmo compassado e disciplinado, comandado pela obstinada Mula. A confraria desta vez tinha contado com todos, que fizeram uma vaquinha para a compra dos vinhos. Alguns deles foram uma verdadeira galinha-morta, um ou outro revelando-se um típico abraço de urso.

A primeira amostra, um tinto de guarda evoluído, foi recebida com barulho e um anormal estardalhaço por um jovem Cachorro que, empurrando a taça de lado, decretou categoricamente que o vinho estava bouchonnée. O Tigre, que até então morcegava, inconformado com sua posição de vice, irônico e agressivo, ridicularizou o Cachorro que, segundo ele, “não passava de um frangote que vive sempre cheirando coisa bem pior no dia-a-dia”.

A Girafa, do outro lado, lançou um olhar de desprezo, a que todos assistiram em suspense, esperando sábias palavras, em vão, porque ela desviou a atenção para outras bandas, sem dizer nem que sim, nem que não, num olhar de quem parecia achar que a vaca ia pro brejo.

A Zebra, famosa pelas posições dúbias, relinchou alto para encerrar a questão, escoiceou o ar e, entre sonoras flatulências, decretou: “cancela esta amostra e vamos para vinhos minimamente potáveis!” O Peru, vermelho, ranzinza e implicante, repreendeu a festiva Zebra: “você não passa de um burro indeciso que, não sabendo se ia ficar branco ou preto, ficou zebrado! Abaixa este rabo ou vá poluir outras paragens!”

O Leão, jogando a juba de lado, lascou: “quando estudei francês no zoológico de Lion, entendi que bouchon é engarrafamento no trânsito... ou rolha de garrafa. Como vinho não é estrada, só pode ser de rolha que vocês estão falando...vamos em frente, para não cometer nenhuma rata, porque toda garrafa de vinho vem arrolhada...isto é, vem bouchonnée!

A sábia Coruja, sempre com uma pulga atrás da orelha, vinha prestando muita atenção para evitar que o presidente falasse burradas ainda maiores. Toureou a situação e, pombas! botou ordem na casa decretando válida a amostra e lembrando que cada um anotasse suas impressões nas fichas individuais.

Não demorou muito para aparecer uma amostra muito interessante e o Elefante, usando de sua indiscutível vantagem física, quis marcar sua presença. Fazendo biquinho, segurando a taça com a tromba, em várias posições contra um facho de luz, decretou “interessante cor rubi com reflexos violáceos...vinho jovem, acidez saliente...”

A Cobra até que tentou envenenar a cena, empurrando o Rato para as bandas do Elefante. Não valeu o jogo rasteiro diante da fixação do paquiderme que, aspirando em vários ângulos, determinou: “...focinho típico, insinuando aromas de cassis, não totalmente madura, com seus toques mais vegetais...”

O Macaco, que arrastava uma asa para a Cobra, interrompeu o discurso do Elefante e vociferou, exibindo-se: “Toma cuidado Grandão. O cassis colhido verdolengo em setembro, nas encostas de Dijon pode mais é trazer aromas de maria-fedida com marcante traço animal das axilas suarentas de quem enfrentou a subida daquelas encostas !!!”.

A gazela, esguia e elegante em seu vestido salmão, virou-se para o lado e cochichou com o Pica-pau: “Até parece que estas cavalgaduras já andaram pelo Côte d’Or ... Ora, ora, no máximo, é aroma de cassis caçado no gargalo do licor da Dubar...ah ah ah”. Em seguida lançou um olhar superior para o bicho-preguiça, ainda concentrado na primeira amostra...

A Hiena não parou de dar gargalhadas de tudo e de todos, afinal era uma festa na floresta e ela, que só se regalava com vinho e com outras coisas uma vez por ano, logicamente nem havia pensado em harmonização com vários tipos de fezes. A risada debochada não agradou aos grandões e deu-se início a uma grande confusão que resultou num verdadeiro estouro da boiada. Eu achei que já estava com um urubu no ombro, pois senti um agressivo abraço de tamanduá.

De sobressalto, acordei. Aliviado, tentei recordar as cenas animalescas mas foi em vão, só apareciam claramente os meus companheiros de degustação fazendo das suas micagens.

Misturando as posturas dos bichos com cenas comuns nos painéis humanos, fiquei meio atrapalhado, apanhei lápis e papel, anotei os principais animais, fui ao centro fiz uma fezinha no jogo de bicho! Agora é esperar pela sorte!

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