A degustação de um vinho vai muito além do ato de sorver gordas talagadas coroando-as com um estridente estalar de língua. Apreciar implica entrega e deleite. Beber apressadamente só faz rebaixar o apreciador à condição de mero aprendiz de amante, sem noção dos prazeres ocultos sob pequenas nuanças. Degustar é um ritual praticado sob a empatia gole-a-gole, num crescendo sutil que estimula nossa sensibilidade, incitando-nos a alçar vôos imaginação afora, onde o vinho permeia a própria sensualidade humana.
Há muito pretenso conhecedor de vinho pecando pela, digamos, ejaculação precoce. Quantas vezes um troglodita não apanha uma garrafa onde o vinho evoluiu em ritmo lento de reações da química fina, quase repouso interno e, sem o menor cuidado, a manuseia com movimentos bruscos, culminando por arrancar-lhe a rolha num descuidado golpe seco final. Um verdadeiro estupro ! Em seguida, sem a menor sensibilidade, despeja o vinho num recipiente qualquer e sorve-o num glu-glu automático, como se fosse uma bebida sem alma. Se, em lugar da garrafa de vinho fosse uma mulher, este egoísta seria um cavalgador solitário que não prestaria atenção à sua companheira que, coitada, não teria a menor chance de chegar lá...
Embora a sensualidade original tenha supostamente se perdido na fábula da maçã proibida e nos conselhos rasteiros da serpente, nada nos tira a certeza de que tudo começou num dia como outro qualquer, na chatice do primeiro condomínio fechado da humanidade, o Paraíso.
Ali, Adão e Eva, embalados numa conversa-vai-conversa-vem, inventaram de tirar a limpo suas diferenças físicas. Corações disparados, adrenalina à toda, ocultaram-se entre as ramagens de uma paradisíaca videira, tornando-a o primeiro motel da Terra. Estava inaugurada a sexualidade humana! Momentos após, saíram disfarçando, folha de parreira cobrindo a genitália e assobiando aquela música do Jota Quest... ”fácil, extremamente fácil...”.
Por esta natural entrega aos prazeres da carne, o casal original foi botado para correr...correr mundo afora e, como resultado, somos bilhões de seres humanos sobre a face do planeta embalados pelo pecado original.
Muitas vindimas mais tarde, as exuberantes uvas das encostas do Monte Ararat foram transformadas em vinho por Noé, empolgado que estava pelo sucesso de sua arca, após um cruzeiro que tinha a nobre missão de salvar do dilúvio casais sexualmente ativos para a perpetuação das espécies. Como comemoração do grande feito, transformou as uvas em vinho, tomou um porre bíblico e, empolgado, saiu nu da barraca mostrando todas as suas vergonhas. Era o vinho trazendo liberação do comportamento humano.
Em conexão com estes antecedentes, a mitologia grega vinculou o vinho à sensibilidade humana, de pronto oficializando uma descrição que, com boa dose de imprecisão cronológica, explicava a sua descoberta. Consta que a revelação do vinho coube ao deus Dionisio, protetor do vinho e da viticultura, o mesmo Bacco dos romanos. Ele vivia no Olimpo, mas passeava freqüentemente pelas planícies gregas para atividades populares, acompanhado de faunos e musas.
Certo dia, brincando de pega-pega, no meio dos parreirais ás margens de um lago, mordiscavam cachos de uvas, lançando alguns deles nas águas do lago. Este embalo deve ter se avançado no tempo até que todos, exauridos, estiraram-se na relva e adormeceram. Mais tarde, acordaram sedentos e correram para a margem do lago em busca de água. Esta, repleta de cachos de uva madura, formava com eles um composto novo, uma mistura que fermentou e se alcoolizou. A bebida, além de saciar a sede, levou-os a sentir um êxtase inebriante de alegria e excitação.
Experimentaram de corpo e alma as qualidades afrodisíacas daquele vinho que, para todo o sempre, foi eleito o mensageiro do prazer e da alegria, consumo obrigatório em reuniões festivas.
Esta tradição grega desembocou na invenção dos primeiros recipientes para tomar vinho. Contam as más línguas que a forma destes primeiros cálices foi influenciada pelo costume da época de se derramar o vinho no colo da companheira e sorvê-lo pouco abaixo de seus seios. A partir dai, os primeiros cálices tomaram a forma dos seios de uma mulher de beleza exemplar na Antiga Grécia – Helena de Tróia. A conformação rasa e bordos sutilmente alargados, eternizaram a delicadeza daqueles seios formosos.
O vinho e a sensualidade seguiram sempre unidos, como no intrincado jogo amoroso , no qual existe sempre um ritual a ser cumprido a dois. Um dos momentos mais importantes do relacionamento homem-mulher está justamente no despertar do interesse, nos olhares furtivos, roubados ao controle das outras pessoas, num jogo malicioso que desemboca numa crescente atração. É justamente assim que começa a degustação de vinhos: um flerte inicial de avaliação visual. Com o cálice de vinho à frente, mergulhamos num jogo sensorial de descobertas de cor, brilho, matizes, detalhes que vão enchendo os olhos, a boca com uma gulosa saliva premonitória.
Numa fase de maior intimidade, o nariz prevê delícias, aproxima-nos daquilo cuja profundidade queremos alcançar. Que homem não se sentiu atraído, envolvido pelo mistério das insinuações de um cheiro feminino, do aroma de um vinho? Algumas pessoas têm sua sensibilidade atraída pelo aroma adocicado, outras pelo perfume de flor, outros pelo cheiro de fruta... Podemos até, ousando, afirmar que o nariz é sensual.
Os mil e um aromas, identificados nos porões de nossas lembranças evocam relações secretas que correspondem a esse buquê. Um gole pausado e generoso traz finalmente o esperado gozo, que inunda nosso corpo com um prazeroso calor.
Com o vinho, homem ou mulher podem caminhar na trilha da fruição. Homem, mulher e vinho fecham o ciclo do prazer.
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