quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

AS ESTRELAS QUE NUNCA SE ENTREGARAM

O Larousse des Vins (1964) destaca o Blanquette de Limoux como o espumante mais antigo da França. Este vetusto vinho crava sua história em tempos anteriores à epopéia do champanhe, tendo sido mencionado pelo cronista francês Froissard no transcorrer do século XIV, ou seja, nos anos 1300. Na parte sul francesa, o clima mais ameno fazia com que os vinhos dessa região apresentassem somente borbulhas discretas. A vantagem deles era que as garrafas quase não estouravam. Por outro lado, eles jamais alcançaram a espetacular qualidade do champanhe.

O mais nobre espumante foi criação da Champagne, os demais o imitaram. Marrison (Wines and Spirits,1962) lembra, no entanto, que quase duzentos anos antes, vinhos efervecentes eram vendidos na Itália como Refosco e Moscato spumante.




Quanto à Champagne, diz-se que seus vinhedos ancestrais precederam os romanos. Incrustada há séculos na confluência das principais rotas comerciais norte-sul, a Champagne sofreu devastações de guerras e coroou reis. De início, seu vinho característico era ligeiramente rosado, cuja qualidade não era objeto de muita consideração. Foi somente no século XVII, pela genialidade e tenacidade de um monge, bem como pelo advento da garrafa mais resistente e da descoberta da cortiça como vedante dos frascos que o mais cobiçado vinho do mundo pode nascer.



O tão propalado pai do champanhe, Dom Pierre Pérignon (1639-1715), aos vinte e nove anos foi designado para o cargo de tesoureiro da abadia beneditina de Hautvillers, no Marne, parte importante da Champagne. O tesouro dos mosteiros franceses de então eram seus vinhedos e seus vinhos. Ser tesoureiro significava, portanto, ocupar-se da complexa atividade vitivinícola. Na abadia de Hautvillers pretendia Dom Pérignon consolidar a base econômica de produção de vinhos, até então tímida, contando com o valor agregado da qualidade da produção local.

Na Champagne, lá estava ele concentrado em seu projeto econômico. Não que fosse um turrão. Era, sim, insistente, impertinente, pertinaz. Suas vestes, sopradas por seus impacientes movimentos pela adega, esvoaçavam em meio a monges e camponeses exauridos pelo trabalho estafante, seu suor empesteando o ar dos corredores do mosteiro. Sua luta era contra a indesejável mania que tinham seus vinhos de estourar as garrafas. Após a fermentação natural, o vinho era engarrafado normalmente, hibernando na tranqüilidade dos meses frios. Bastava vir a primavera e uma segunda fermentação começava, enchendo os frascos com perigosas minúsculas bolhas. Era tudo o que ele não queria, era o desafio cotidiano, apagar as estrelas ocultas no seio dos vinhos de Hautvillers.



O monge cismava: próximo a Carcassone, os vinhos traziam o abominável gás, mas as garrafas não estouravam, garantindo a passarela por onde desfilavam as estrelas dos Blanquettes de Limoux. Na Borgonha fazia-se vinho da mesma Pinot Noir que ele adotara na Champagne, e o gás não se formava, permitindo viagem tranqüila às frágeis garrafas, que iam agradar a consumidores em destinos distantes. Por que, então, o pesadelo estava reservado a ele? Todo o cuidado na seleção dos cachos, das bagas, todo o capricho no engarrafamento do vinho e o diabo fazia com que, de vinte garrafas a entregar, até dezoito podiam estourar. Mesmo dentro da própria adega, em meio ao silêncio e ao frio, havia o susto das explosões, que por vezes feriam alguém. O tesoureiro da abadia estremecia de indignação.

Revia o processo: observações cuidadosas selecionaram a Pinot Noir, cepa tinta, menos sujeita à segunda fermentação; pessoas rigidamente disciplinadas exerciam colheita primorosa, com seleção rigorosa das bagas; prensagem ininterrupta das uvas, após a chegada à adega, numa atividade febril que levava os homens à exaustão: uma receita de processo que tinha tudo para dar certo. Mesmo assim, o vinho tranqüilo que almejava não acontecia. Lá estava a terrível ameaça da espuma a atormentá-lo.



Durante mais de quarenta anos, na caça persistente como mal sucedido exterminador das estrelas, foi esse monge aumentando a qualidade decorrente das minúcias e requintes de cuidados, seus vinhos se sofisticando, alcançando preços que representavam o dobro, às vezes o triplo do valor pago a outros vinhos.

Quem não tem cão caça com gato! Não podendo acabar com as bolhas, procurou garantir a integridade de sua produção lançando mão de garrafas de melhor estrutura e resistência (favor devido aos ingleses) e da novas rolhas de cortiça íntegra (favor devido aos iberos).




O inesperado disso tudo aconteceu: as bolhas viraram moda, e os espumantes da Champagne passaram a gozar de mercado garantido. Dom Pérignon, vencido pelas circunstâncias, triunfalmente festejou o vinho que trouxe a riqueza a Hautvillers.

O champanhe que hoje tomamos devemos ao trabalho e à determinação de um monge. Outros gênios vinícolas, como a viúva Clicquot, também contribuíram para a melhoria do processo. Bebemos atualmente um vinho que é um blend de castas, cujo rótulo, a despeito do vinhedo ou da origem, nomeia o fabricante. As uvas são compradas aos vinhateiros num sistema de preço cruzado com qualidade que vai definir a elegância do vinho e o preço final da garrafa.

Apesar da lenda que mostra um Dom Pérignon provando seu vinho e exclamando estar bebendo estrelas, relatos da época (Hugh Johnson – A História do Vinho, 1999) apresentam um Dom Pérignon abstêmio.

Imaginem se ele gostasse de beber !!!

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