Quem canta seus males espanta, diz o ditado. Se vem da voz popular, é a pura verdade! Quando a música toma conta de nosso espírito, não sobra espaço para ruminar problemas. Por outro lado, somos quase sempre presos pelos prazeres da boca. Modernamente, não nos alimentamos pura e simplesmente, degustamos prazerosamente cada bocado, sob música de fundo harmonizada.
Daí vem a questão da sociabilidade humana. A música desenha um cenário psicológico harmonioso, a boa mesa cria o clima da satisfação dos nossos sentidos, e o vinho, como mensageiro da alegria humana, traz o fecho mágico da trilogia. O vinho é mais do que uma bebida, ele reconforta, alimenta e aproxima pessoas. O vinho, além de combinar com os pratos e com música, traz relações sinceras, até aquelas do homem consigo mesmo. Não se vê alguém afogando as mágoas no vinho mas, sim, procurando nessa bebida a multiplicação de seu deleite.
Nos anos dourados, década de 1960, o Brasil foi embalado pelas bandas inglesas de rock, porta que se abriu na década de 1970, ao mesmo tempo em que a jovem geração coca-cola iniciava vôos discretos em direção aos vinhos brancos alemães da garrafa azul.
O vinho viveu uma grande virada na transição para os anos 1980, que trouxeram o crescimento da produção dos tintos robustos mundo afora. A essa época, brotavam movimentos de renovação do rock brasileiro, que desenhou ao final da década de 1980 sua explosão nacional, com muitas bandas brasileiras mostrando a transição do cover e da influência externa para a personalidade própria nas composições românticas, rebeldes ou de protesto. Era a face do nosso rock n’ roll!
Quem não se lembra do Ira! e seu sucesso? Lá estava uma de suas principais figuras, o guitarrista Edgard Scandurra. Ele sempre foi um inovador e revolucionário de cerne nobre. Além do Ira! participou do então Ultraje... cujo nome ele, sem querer, ajudou a completar para Ultraje a Rigor. Tocou no Smack e foi o batera que durante dois anos deu volume às músicas das meninas do Mercenárias. Em 1986, recebeu com o Ira! disco de ouro em pouco tempo de estrada. Como fala o Faustão, “brincadeira, bicho”.
EDGARD SCANDURRA TOCA SUA "GUITARRA" DE SIDRA FRANCESA!
Na década de 1990, Scandurra aproximou-se da música eletrônica, participando de sua transformação em febre popular, dando a ela a alma de sua guitarra inconfundível.
Casado, teve experiência de vida na Normandie, França. A música francesa, especialmente de Serge Gainsbourg, irrigou suas veias artísticas e embalou uma nova fase com a música associada à gastronomia. Naquela parte da França experimentou e adotou a sidra, um fermentado de maçã delicado e extremamente agradável. A sidra ensinou-lhe, dentro da magia da elegante cozinha francesa, os prazeres das múltiplas combinações de pratos e bebidas. Sidras francesas e gallets (crepes), nas mais diferentes versões de recheios, foram a porta para o mundo da enogastronomia!
CASAL SCANDURRA - RITMO AFINADO PARA HARMONIZAÇÕES!
Atualmente, com seu restaurante em São Paulo, o Petit Trou, fecha o círculo: trabalho prazeroso de gravações nos estúdios, cozinha típica francesa e ... bons vinhos.
Ali, saboreando gallet com sidra, puxei-lhe a língua para que ele me decifrasse harmonizações enomusicais! Anotei algumas.
As grandes canções do rock n’ roll tradicional, no fundo, trazem uma pegada Velho Mundo, bateria mais elaborada, um traço da austeridade britânica e, portanto, teriam que ser acompanhadas de um tinto estruturado de Bordeaux, região francesa que já foi parte da Inglaterra.
A música eletrônica, com sua batida repetitiva e sonoridade primitiva, remete à concepção de uma harmonização com o forte travo na boca dos vinhos taninosos do Madiran, do sudoeste francês, berço dos Tannat de ataque forte.
Aquela canção sussurrante do Serge Gainsbourg, instigante e sutil, faz um fundo musical perfeito para a insinuante finesse da sidra Charlotte Corday, AOC Pays d’Auge, ao beliscar um canapé delicado.
Apertando o cerco sobre este ícone da música brasileira, eu quis saber como ele harmonizaria uma das músicas de sua autoria, com inconsciente predileção sobre as demais, aquela que ele sempre inclui nos novos repertórios.
Edgard Scandurra ficou enroscado. Afinal cada composição é como um filho, difícil ter preferências. Arranhou daqui, cismou dali e, de olhos brilhando, confessou uma ligação especial com a música Tolices. Canção lenta, romântica, de um amor platônico e ingênuo: “são tolices que penso sobre você... por que andamos na mesma rua? Vivo sonhando, imaginando você, imagino pegadas e as vou seguindo...”. Este trecho é quase a estrutura de uma degustação, temos a visão do vinho sem tocá-lo, sentimos aromas e viajamos na imaginação.
EDGARD SCANDURRA RECEBE SERGIO INGLEZ: COMES, BEBES E ROCK N'ROLL!
Trocamos algumas idéias e ele próprio fechou a questão. Tolices tem harmonização com o Vouvray, um branco que varia de seco a doce. Com a leveza de Tolices nos porões da memória, fomos para o suflê de queijo de cabra e um Vouvray seco. Para não ficar na metade, com o mesmo fundo musical passamos a uma patisseria com nozes e pêras assadas, casada com um Vouvray meio-doce!
No sorriso franco do Scandurra surpreendi mistérios desvendados na combinação de alguns pratos com vinhos ou com sidra... enquanto a música harmonizava o ritmo do momento.
Quer mais? Vá ao Petit Trou, escolha um crepe, peça uma sidra da casa e preste a atenção no fundo musical que te leva para a Normandia!
2 comentários:
É isso ai pai! Vai separando uns bons vinhos que no final de Dezembro estaremos todos aí com guitarras mil para tocarmos o maior Rock e degustar a melhor bebida de sempre.
Léo, Chris, Nando e Loló.
Foi um encontro enoguitarrístico: um dos grandes nomes do rock e da guitarra nacional com um dos grandes nomes do vinho no Brasil. Digno de uma bebemoração (para quem bebe sem ler o rótulo) ou de um brinde (para quem lê o rótulo antes de degustar). Em ambos os casos, o prazer ta garantido, como ler os seus textos, pai. Ou ouvir os discos do Scandurra. Abraço!
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