sábado, 13 de outubro de 2012

HUNGRIA - SOBRE OS PUTTONIOS DE UM NÉCTAR

Era uma bela manhã de outubrio e o abafado calor do verão euriopeu já dava os primeiros sinais e prometia as primeiras chuvas. No ar sentia-se o prenúncio de dias outonais mais frescos e ventilados, cam as folhas avermelhadas começando a tomar conta da paisagem.
 
A beira da estrada uam placa bem tosca indicava Tokaj-Hegyalija. Busquei nos meus parcos conhecimentos de húngaro, assimilados em um mosteirio de Buidapest e consegui traduzir a indicação: Sopés de Tokai. Tomei a trilha e tive que caminhar muito.


Vinhos hungaros, inclusive os nectares Tokay.
 
Parei várias vezes para recobrar as forças e para roer o naco duro de pão que havia trazido. Subi pelas encostas de Oremus até a entrada do castelo do príncipe da Transilvânia, onde esperava tomar um banho na grande tina de água fria. No outro dia acompanharia a colheita das uvas da princesa Zsuzsanna.

Na entrada, estava à minha espera o pastor e vinhateiro particular da princesa, Laczkó Szepsi que, apreensivo, mal cumprimentou e foi logo grunhindo: “Seja bem vindo...vamos nos apressar...temos que nos proteger”.

Estávamos nas alturas de outubro de 1630 e uvas bem maduras davam vida aos belos parreirais das encostas de Oremus. O pastor estava afobado e subimos acelerados, ele falou baixinho: “Temos problemas para colher uvas amanhã.”

Após lavar-me e tirar o grosso pó acumulado durante a viagem, taça de vinho na mão, fiquei sabendo do iminente ataque de hordas turcas. Szepsi conhecia bem estas ações que saqueavam estoque de vinho dali para comercialização em outras plagas. Com poucas palavras convenceu os patrões a não colher uvas até passar a ameaça. Os objetos valiosos e os mantimentos vitais foram levados ao abrigo subterrâneo, cujo acesso era muito bem camuflado. Dias depois, o vigia desce dos altos da elevação de Oremus e dá conta da aproximação dos invasores turcos. Simulamos abandono da casa e escondemo-nos no abrigo.

 

 


Fazia já quase cento e cinqüenta anos que os turcos dominavam as terras ao centro e ao sul da Hungria, ficando apenas a magra fatia da Transilvânia sob relativa independência, mas que não ficava livre das incursões dos dominadores. Os turcos chegaram, vasculharam todos os cômodos do castelo mas, não encontrando vinho ou pertences de valor, rumaram para outras propriedades.

Mal a poeira assentou, saímos do esconderijo, verificamos que vinhedos ficaram intocados porque o aspecto dos cachos de uva supermadura não animaram aos turcos. As uvas, Algumas já murchas, estavam desidratadas (em húngaro, Aszú), com a aparência da passas, o que deixou a impressão de que a safra estava perdida. Muito se discutiu, mas, após eu ter insistido que a minha longa viagem ficaria sem sentido, ficou resolvido que as uvas seriam vinificadas assim mesmo. O maior argumento foram as anotações antigas de Szepsi com relatos de que, sessenta anos atrás, em 1571, um agricultor da região, Máté Garay havia entregue a seu irmão János 52 cartolas de vinho elaborado de uvas desidratadas.

Sem detalhes do processo, improvisamos. Em uma velha tina de madeira, acumulamos as uvas colhidas até o preenchimento total. Surpresa! Pelas frestas do fundo da tina começou a verter, pelo peso das uvas, um mosto que coletamos numa tina menor. Era um suco grosso que lembrava um xarope.

Com uma velha verruma, Szepsi fez perfurações no fundo da pipa e conseguiu drenar mais e mais mosto denso. Com uma pisa sobre o monte de uvas, mais xarope escorreu na parte inferior, mosto que foi batizado de Esszencia e deixado a fermentar. Pelo altíssimo conteúdo de açúcar a fermentação foi extremamente lenta. As uvas pisadas formavam uma pasta que o sisudo Szepsi decidiu usar para enriquecer vinhos secos.
 



Jantar hungaro na antiga Sociadade Brasileira dos A migos do Vinho.
 
Apanhou uma caixa de madeira usada para colher uva e preencheu com cerca de 25 kg da pasta, porção quepara facilitar passou a se chamar 1 puttony. Colocou vinho seco em seis tinas e adicionou diferentes doses de pasta, obtendo seis amostras equivalentes a adição de 1, 2, 3, 4, 5 e 6  puttonios. Estas foram deixadas macerando por alguns dias e depois de prensadas, foram colocadas em seis gönc (cartola de carvalho de 136 litros) para sofrer fermentação natural.

Após semanas de espera para que se completasse a fermentação, passamos à degustação dos vinhos Aszu (de uvas desidratadas). As duas primeiras não apresentaram grandes diferenças e foram superadas amplamente pela amostra com 3 puttonios, um básico digno de prova. A partir daí, 4, 5 e 6 puttonios ofereceram uma evolução nítida de predicados bem diferentes. Formaram o grupo dos Aszu 3, 4, 5 e 6 puttonios.

Szepsi ainda fez amostra com 8 ou mais puttonios  e a prova indicou que a de 8 seria o máximo de adição e o seu vinho seria Aszu Esszencia.

Aproximou-se então uma linda cigana com uma taça deste último vinho, olhos negros, vinho rubro, eu não sabia se admirava a beleza da moça ou o néctar que ela trazia, ou se agarrava ambas, taça e cigana. Alguém me empurrava o ombro, insistentemente. Vou ou não vou, pensei. Exausto pela dúvida, o desagradável cutucar no ombro... acordei, estava na degustação da Vinho & Cia. Só ouvi o Régis Gehler falar:

- Professor...pro-fe-ssor! Qual a sua nota para a amostra oito???

 

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